Eu não queria estar na pele dele
naquele dia. A missão que recebera do Senhor era a mais complicada de sua
trajetória de profeta. Como dizer ao homem mais poderoso do mundo que ele
estava em pecado? Como confrontar aquele que se acostumara com alcunha de
“homem segundo o coração de Deus”?
Ainda com olheiras que denunciavam a noite mal dormida, Natã se dirigia ao palácio de Davi. Enquanto caminhava, se indagava:
- O que aconteceu com Davi? Ele está irreconhecível! Aonde foi parar
aquele menino que pastoreava as ovelhas do seu pai? Será que ele vai receber
bem a palavra que o Senhor me ordenou que lhe dissesse? Será que amanhã a estas
horas ainda estarei vivo? Já não bastou ter que dizer a ele que Deus não lhe
permitiu construir o tão sonhado templo?
O fato é que Davi pecara contra o
Senhor. Seu pecado teria que ser exposto e confrontado.
Dias antes, enquanto seu exército lutava
bravamente por seu reino, Davi, que sempre estava à frente da batalha, resolveu
tirar uns dias de folga, desfrutando do requinte de seu palácio real.
Numa bela tarde, enquanto passeava no
terraço, avistou uma mulher que se banhava, e que, a seus olhos, parecia se
insinuar. Foi paixão fulminante à primeira vista. Davi não titubeou, e mesmo
sabendo que era mulher de um dos homens mais leais de seu exército, mandou
trazê-la aos seus aposentos e a possuiu.
Tudo não teria passado de uma
puladinha de cerca básica não fosse a inusitada notícia: Bate-seba estava
grávida. E agora, José? Ou melhor... e agora, Davi?
Desesperado ante a possibilidade de
ter seu pecado exposto à opinião pública, o que traria enorme desgaste à sua
imagem, Davi arquitetou um plano. Mandou chamar Urias e tentou convencê-lo de
tirar alguns dias de descanso, curtindo sua linda e carente mulher. Para todos
os efeitos, a criança seria resultado daquelas noites de amor. Mas para sua
surpresa, Urias disse não.
- Como eu poderia usufruir do amor de minha mulher sabendo que meus
homens estão no front de batalha? Obrigado pela oferta, rei. Mas minha resposta
é não.
Davi ainda tentou embriagá-lo, mas
não adiantou. Urias não cedeu.
Só restou-lhe uma alternativa.
Enviou, por mãos do próprio Urias, uma carta ordenando que Joabe, seu general,
pusesse-o à frente da batalha, e quando os inimigos atacassem, retiram-se,
deixando-o sozinho. Davi confiava tanto em Urias que sabia que ele não abria a
carta que continha sua sentença.
Se Davi tivesse um espelho mágico
semelhante à rainha má do conto de Branca de Neve, e lhe perguntasse: “Espelho,
espelho meu, haveria no reino alguém mais íntegro do que eu?”, ele certamente
responderia: “Sim! Urias.” Por isso, Davi tinha dois motivos para desejar a
morte de Urias.
Como Davi conseguiu dormir depois
disso? Onde foi parar aquele menino que derrotara Golias e se tornara na maior
referência de heroísmo que Israel tivera em toda a sua história? Em que ele se
transformou?
Agora o velho Natã tinha que
confrontá-lo.
Tanto Deus, quanto Natã sabiam que
Davi apresentaria algum argumento para justificar seu pecado. Por isso,
inspirado pelo Espírito, Natan resolveu tomar uma via inusitada para alcançar a
sua consciência.
Em vez de confronto direto, Natan
contou-lhe uma estória que transcrevo abaixo:
“O Senhor, pois,
enviou Natã a Davi. E, entrando ele a ter com Davi, disse-lhe: Havia numa
cidade dois homens, um rico e outro pobre. O
rico tinha rebanhos e manadas em grande número; mas o pobre não tinha coisa alguma, senão uma pequena
cordeira que comprara e criara; ela crescera em companhia dele e de seus
filhos; do seu bocado comia, do seu copo bebia, e dormia em seu regaço; e ele a
tinha como filha. Chegou um viajante
à casa do rico; e este, não querendo tomar das suas ovelhas e do seu gado para
guisar para o viajante que viera a ele, tomou a cordeira do pobre e a preparou
para o seu hóspede. Então a ira de
Davi se acendeu em grande maneira contra aquele homem; e disse a Natã: Vive o
Senhor, que digno de morte é o homem que fez isso.Pela cordeira restituirá o
quádruplo, porque fez tal coisa, e não teve compaixão. Então disse Natã a Davi: Esse homem és tu!” 2 Samuel 12:1-7
Davi fora pego em suas próprias palavras!
Ele mesmo lavrou sua sentença. Nem mesmo chegou a usar qualquer argumento para
justificar-se, pois fora sumariamente desarmado diante dos olhos de todos os
que o rodeavam.
Creio que Natã usou aquela estorinha
envolvendo ovelhas, rebanhos, para de alguma maneira relembrar a Davi de onde
Deus o tirara. Num encontro anterior entre Natã e Davi, Deus lhe dissera pela
boca do profeta: “Eu te tomei da
malhada, de detrás das ovelhas, para que fosses príncipe sobre o meu povo,
sobre Israel” (2 Sm. 7:8).
Mas agora, ele já
não trazia consigo o cheiro das ovelhas. Os odores palacianos o substituíram. O
mesmo filho de Jessé que se atracara com um urso e um leão para livrar uma
única ovelha do rebanho que seu pai lhe confiara, transformara-se num
insaciável predador.
Porém, por baixo de todas aquelas camadas ainda havia um menino que precisa ser redescoberto. Não creio que a intenção de Deus fosse a de envergonhar a Davi. Aquela estória foi o artifício usado por Deus para promover o reencontro entre Davi e um velho conhecido.
Porém, por baixo de todas aquelas camadas ainda havia um menino que precisa ser redescoberto. Não creio que a intenção de Deus fosse a de envergonhar a Davi. Aquela estória foi o artifício usado por Deus para promover o reencontro entre Davi e um velho conhecido.
Naquele dia, através
dos lábios do profeta, o velho Davi recebeu a visita do menino Davi. Naquele
dia Deus matou a saudade que sentia do pastorzinho de Israel.
Se fôssemos
visitados hoje por quem éramos quando meninos, será que seríamos reconhecidos?
Em que temos nos tornado? Teríamos orgulho ou vergonha de nós mesmos? Como
explicaríamos aos pastorzinho de ovelhas as atitudes precipitadas tomadas pelo
rei?
Como seria receber a visita do Hermes de 33 anos atrás, que com o coração cheio de alegria descia às águas batismais? Em que me tornei, afinal?
Como seria receber a visita do Hermes de 33 anos atrás, que com o coração cheio de alegria descia às águas batismais? Em que me tornei, afinal?
Teremos perdido o
idealismo? Tornamo-nos cínicos, gananciosos, presunçosos,
insuportáveis? Que sentença a criança que fomos aplicaria ao adulto em que
nos tornamos?
O problema é que
nunca estamos satisfeitos com o que temos. Queremos sempre mais... Não nos
contentamos com a vida com abundância prometida por Jesus, e reivindicamos uma
vida com ganância proposta por um Cristo impostor.
O mesmo Davi que um dia
compôs um dos mais célebres salmos de todos os tempos, dizendo que o Senhor era
seu pastor e que nada lhe faltaria, finalmente encontrou algo que lhe faltava:
a mulher do seu próximo.
Estamos mais
preocupados com o que temos adquirido, do que com o que temos nos tornado. Por
mais que sejamos bem-sucedidos do ponto de vista profissional, material, ou
mesmo familiar, queremos mais... E para isso, pisamos em todos os valores que
antes nos eram caros. Vendemos a nossa alma a preço de banana. Mesmo tendo um
harém à nossa disposição, não é o bastante. Queremos Bate-seba. Queremos a
mulher de Urias.
Onde é que foi parar
aquele menino...
Se o virem por aí,
diga que estou com saudade.
Saudade de quem um
dia era. Saudade da minha ingenuidade. Do meu romantismo. Do meu primeiro amor.
Quem sabe Deus use um velho profeta para me fazer relembrar o cheiro das
ovelhas do meu pai.
Talvez o próprio Deus esteja com saudade de você.
Talvez o próprio Deus esteja com saudade de você.
Nenhum comentário:
Postar um comentário